segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

"Todos os sonhos dela estavam marcados pra dali a três, cinco, dez anos. Nenhum deles valia pra agora, pro dia em questão. Me dava agonia ver alguém se preparando constantemente pra começar a viver. Eu não conseguia fazer isso. Parecia bem mais adequado permanecer exatamente onde eu estava, aceitando que minha vida era aquilo mesmo. Eu não precisava de muita coisa. Gostava de ir à janela do meu apartamento e olhar a cidade lá embaixo."
Trecho de Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera...

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

"Alexandra vivia nos dizendo que tudo na vida tem um propósito, nada é por acaso. Dizia isso para os outros e sobretudo para si mesma quando a existência se tornava um pouco inesperada ou dolorosa demais para o seu gosto, como se para cada tumulto o destino reservasse uma compensação orquestrada por uma benévola ordem superior. A trama de causas e efeitos dessa reparação cósmica podia estar oculta na esteira de nossos sofrimentos, mas cedo ou tarde seu diagrama ganharia nitidez e poderíamos dizer a nós mesmos: eu tive de passar por aquilo. Foi necessário para que algo belo acontecesse, para que a justiça se cumprisse, para que eu me tornasse uma pessoa melhor. Para mim, esse modo de ver as coisas tinha pelo menos duas falhas. Em primeiro lugar, se o destino opera de um mecanismo de compensações, é certo que ele também compensa nossos momentos de felicidade e conquista com algumas rasteiras bem dadas, mas Xanda ficava furiosa quando eu chamava sua atenção para esse fato. A seu ver, as noções do bem e do destino eram exclusivamente interligadas. A balança pendia apenas para um lado, o lado conveniente. Se acontecia de pender para o outro, era sob o efeito de algum tipo de conspiração benigna cujas razões o futuro haveria de nos revelar. Mas a trama de causas e efeitos nos joga tanto para cima quanto para baixo. É apenas isto; causa e efeito. Não há desígnio superior. Há ações e reações. Méritos e deméritos. A segunda falha era a seguinte: com um pouco de criatividade e convicção, inúmeras tramas de causa e efeito podem ser desenhadas por diferentes pessoas, ou até mesmo por uma única pessoa, para relacionar dois ou mais fatos determinados. Se Alexandra queria encontrar um propósito benigno numa infelicidade, cedo ou tarde ela o encontraria. Sua mente ergueria a ponte necessária para que sua explicação do mundo se justificasse. Ela aguardaria com paciência o episódio venturoso que poderia ser interpretado como resultado de um revés anterior. A vida lhe ofereceria um, com certeza, ficando mais uma vez provado que o sofrimento é apenas prelúdio para a felicidade – uma perspectiva que, no caso dela, provou ser insustentável. Mas às vezes um revés é apenas um revés. É comum ficarmos sem compensação nenhuma para um desastre, uma agressão, um erro, uma doença, o fim de um amor, a perda de uma pessoa amada. É uma questão de perspectiva, ou de fé. Nascemos com um prazo limitado para interpretar o mundo. Fazemos o que podemos. O legado de todos que nos precederam nesse esforço pode ajudar ou confundir, e em última instância ninguém nunca prova nada. Atribuir um propósito superior a um lance qualquer da vida é construir uma ficção muito pessoal. Dar sentido ao mundo é um ato criativo. Uma visão de mundo é uma narrativa."
Trecho de Cordilheira, romance de Daniel Galera.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

por la ventana...

La primera novela de Tiago Elídio...

Sinopsis del libro:
Un joven brasileño homosexual de veintipocos años va a la Universidad Complutense de Madrid para un intercambio universitario, por seis meses. En la sorprendente capital española tiene nuevas experiencias, conoce nuevas personas, descubre otras culturas y comprende mejor su país de origen. Esta emocionante historia cuenta el relato de un viajero y sus descubrimientos y aventuras en otro continente. 

The first novel of Tiago Elídio...

Synopsis of the book:
A young Brazilian homosexual in his twenties goes to the Complutense University of Madrid on a university exchange, for six months. In the amazing Spanish capital, he has new experiences, meets new people, discovers other cultures and better understands his home country. This exciting novel tells the story of a traveler and his discoveries and adventures in another continent.

Disponible en / Available in: 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Felicidade clandestina...

"Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."
Clarice Lispector...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

"Mas ela queria estar por perto. Querer não era um sinônimo de pensei bem, refleti, pensei os prós e contras e concluí que. Era um verbo físico, não mental.
Era um verbo que se conjugava com o estômago, com os músculos, com o frio das mãos e o nó esquisito na parte inferior da gargante, não com as ferramentas da sabedoria e da ponderação. Era um verbo que acontecia no mercado negro das decisões conscientes"
Adriana Lisboa... Hanói...

sábado, 15 de junho de 2013

"Será que todas as pessoas que conhecemos, ela se perguntou mais tarde, têm alguma função na nossa vida, algum papel a desempenhar (ou nós em sua vida, o que em essência dá no mesmo)?
Não precisa ser algo grandioso, podemos topar com alguém na esquina apenas para que esse alguém nos pergunte a direção da rua tal, onde tem um compromisso importante. Podemos cruzar o caminho do cachorro que para e cheira os nossos sapatos e foi um pequeno instante que dividimos sem outro objetivo além de dividi-lo, nós e o cachorro.
Esbarramos, trocamos um olhar, uma palavra, seguimos em frente. E a marca fica, o registro daquele evento na memória de um universo ao qual tudo importa. Um espirro importa. Um espirro e um estranho que diz saúde e os dois sons por poucos segundos no ar - um acontecimento."
Adriana Lisboa... Hanói...

sexta-feira, 19 de abril de 2013

suco de laranja e acerola...

estava sentado em um café... e havia pedido um suco de laranja e acerola... era o suco do dia, mais barato... e esperava... o suco e nada mais em particular... estava desiludido; portanto, não podia esperar muita coisa... mas, enfim, esperava... o dia estava bastante agradável... o outono havia finalmente chegado... sol moderado, luz baixa, frescor... mas o café estava um pouco ruidoso, pois todos conversavam com um tom de voz elevado... elevando, assim, o seu desconforto... sentia-se um pouco incomodado... sozinho, não conseguia se tranquilizar... observava, portanto, as pessoas ao redor, tentando não ser notado... mas, às vezes, desconcentrava-se e permanecia o olhar invasivo em cima de algum homem bonito... não conseguia evitar... sobretudo, em relação a dois deles, em particular... tomavam café e conversavam alegremente... o que se via mais de frente possuía um belo sorriso... o outro, que estava quase de costas, deixava sobressalente seu belo bíceps... enfim, um lindo casal, exalando testosterona no café... mas possivelmente não eram um casal de amantes... um deles possuía uma aliança na mão esquerda... era, portanto, casado... ou possivelmente eram, sim, um casal de amantes e estavam se encontrando furtivamente no meio da tarde, às escondidas... de qualquer forma, mantinham-se discretos, se este era o caso.. mas, na verdade, nunca saberá de fato qual seria o caso, pois provavelmente nunca mais os verá... mas, na sua cabeça, gostava da hipótese de quem fossem amantes... seus amantes... mas isso não vem ao caso...
Tiago Elídio...

domingo, 24 de março de 2013

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013





















Foto: Fernanda Vilar


"Parecia bem mais complicado na época do Cortázar, toda aquela história para passar de uma janela a outra um pacote de mate. Mas fazia calor, ninguém queria descer as escadas e chegar ao outro prédio. Por isso colocamos a tábua para que a Maga fosse levar o chá. Estava saindo de casa, já com a mochila nas costas, quando vejo as roupas estendidas do lado de fora. A Maga levou a chave. Cortázar morreu. Eu continuo aqui na França. E sem um cronópio para me ajudar a pegar essas malditas roupas. Um fama brincalhão tira fotos sem parar da minha tentativa frustrada de pegar essas roupas. Passei anos dizendo ser eu o filho de Cortázar, vivi com a Maga e uso o cabelo e a barba como os de meu criador. Gigantes são assim, não espalham sua grandeza. E eu precisava subir em suas costas. Pegar as suas roupas. O dinheiro acabou. As roupas eram para o leilão. Agora já nem restam as esperanças. O quanto vale ter sido captado por um fama, sendo eu Horácio, tentando pegar as roupas do autor? Ei, você, quer comprar essa foto?"

Fernanda Vilar

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o andarilho ladrão...


"ia de cidade em cidade, sem rumo certo... nas costas, apenas sua mochila, onde levava somente o necessário... afinal, o mais importante já tinha guardado dentro de si, suas experiências e suas lembranças... levava também um violão, para sentar em alguma praça movimentada e ganhar algumas moedas, que não significavam nada para muitos... mas, para ele, serviam para muito... com elas, alimentava-se, alojava-se e continuava se movimentando... muitas vezes, encantava alguma jovem local com sua música sedutora... e se beneficiava então de algumas agitadas noites de sexo antes de rumar a outra direção, deixando outro coração partido pelo caminho... o que elas não sabiam é que, além de seus corações, ele também costumava roubar roupas... sim, era um jovem larapio e isso fazia parte do seu espírito aventureiro... assim, sempre que via roupas estendidas em algum varal, seus olhos brilhavam igual a um cão que fareja seu alimento... então, à espreita, observava se não havia nenhuma testemunha por perto... depois, analisava se algo lhe serviria... como tinha uma estatura mediada, era fácil encontrar algo que lhe fosse útil.. e como tinha muita experiência, apoderava-se da roupa alheia muito rapidamente... mas ele tinha uma regra própria para esse seu pequeno delito... somente roubava uma peça por cidade, para não chamar a atenção e passar despercebido... funcionava muito bem... muitas senhoras, donas de casa, achavam que estavam ficando caducas e não sabiam onde tinham enfiado suas peças de roupa... mal sabiam elas que as antigas vestimentas de algum membro de suas famílias já estavam bem longe... indo de cidade em cidade, sem rumo certo..."

Tiago Elídio...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

"Il me semble que je serais toujours bien là où je ne suis pas, et cette question de déménagement en est une que je discute sans cesse avec mon âme."

"Sempre me parece que estarei bem onde não estou, e essa questão sobre o deslocamento ocupa perenemente minha alma."

Charles Baudelaire

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Espera

Sozinha aguardava...

Não tinha nem fome, nem sede, só anseio por mudanças. Apesar disso, pediu um café, na busca de qualquer atrito que pudesse agitar aquele vazio que se acomodava cada vez mais.

Ele não viria, soube desde o início, desde a proposta. Ela sabia que aquele gesto significava o fim. Por mais que ele a procurasse no futuro, nada podia ser feito. Sua ausência naquela e nas noites anteriores definia aquilo que ainda estava indefinido.

Não sabia qual seria seu próximo passo, sem a única certeza que lhe restava. Sem forças para levantar, permaneceu, pretendendo passar a noite inteira sentada naquele café...


Aline Siqueira















Automat
Edward Hopper

à espera do fim do mundo...

diziam que aquele seria o último dia, que o mundo acabaria... então resolveu ir ao restaurante Automat, sentar e esperar... antes, como um autômato, dirigiu-se a uma máquina, enfiou-lhe uma moeda e serviu-se daquela bebida que tanto apreciava... enquanto degustava aquela que poderia ser sua última xícara de café, pôs-se a pensar na sua vida... não se importava muito se o mundo realmente fosse acabar... sentia-se indiferente frente a tudo... o mundo havia tomado um rumo que não lhe agradava... e sua vida também... solteira, com poucos amigos e muitas desilusões, havia se fechado em si mesma... ensimesmada, portanto, permanecia... o café estava amargo... na verdade, não gostava de adoçá-lo... já havia se habituado à amargura... permaneceu também de costas para a rua... pouco lhe importava o que estivesse acontecendo do outro lado do vidro... preferia não ver... além disso, se o apocalipse de fato ocorresse, apenas o sentiria e pronto... mas não havia nenhum sinal de que algo realmente mudaria... aparentemente o mundo continuava o mesmo... o mundo e seus habitantes humanos, que seguiam agindo como se fossem verdadeiros autômatos, sem vontade alheia, sem reflexão, sem ação... precisava lidar com essa questão... tomou outro gole de café e continuou esperando...

Tiago Elídio...