terça-feira, 3 de dezembro de 2013

"Alexandra vivia nos dizendo que tudo na vida tem um propósito, nada é por acaso. Dizia isso para os outros e sobretudo para si mesma quando a existência se tornava um pouco inesperada ou dolorosa demais para o seu gosto, como se para cada tumulto o destino reservasse uma compensação orquestrada por uma benévola ordem superior. A trama de causas e efeitos dessa reparação cósmica podia estar oculta na esteira de nossos sofrimentos, mas cedo ou tarde seu diagrama ganharia nitidez e poderíamos dizer a nós mesmos: eu tive de passar por aquilo. Foi necessário para que algo belo acontecesse, para que a justiça se cumprisse, para que eu me tornasse uma pessoa melhor. Para mim, esse modo de ver as coisas tinha pelo menos duas falhas. Em primeiro lugar, se o destino opera de um mecanismo de compensações, é certo que ele também compensa nossos momentos de felicidade e conquista com algumas rasteiras bem dadas, mas Xanda ficava furiosa quando eu chamava sua atenção para esse fato. A seu ver, as noções do bem e do destino eram exclusivamente interligadas. A balança pendia apenas para um lado, o lado conveniente. Se acontecia de pender para o outro, era sob o efeito de algum tipo de conspiração benigna cujas razões o futuro haveria de nos revelar. Mas a trama de causas e efeitos nos joga tanto para cima quanto para baixo. É apenas isto; causa e efeito. Não há desígnio superior. Há ações e reações. Méritos e deméritos. A segunda falha era a seguinte: com um pouco de criatividade e convicção, inúmeras tramas de causa e efeito podem ser desenhadas por diferentes pessoas, ou até mesmo por uma única pessoa, para relacionar dois ou mais fatos determinados. Se Alexandra queria encontrar um propósito benigno numa infelicidade, cedo ou tarde ela o encontraria. Sua mente ergueria a ponte necessária para que sua explicação do mundo se justificasse. Ela aguardaria com paciência o episódio venturoso que poderia ser interpretado como resultado de um revés anterior. A vida lhe ofereceria um, com certeza, ficando mais uma vez provado que o sofrimento é apenas prelúdio para a felicidade – uma perspectiva que, no caso dela, provou ser insustentável. Mas às vezes um revés é apenas um revés. É comum ficarmos sem compensação nenhuma para um desastre, uma agressão, um erro, uma doença, o fim de um amor, a perda de uma pessoa amada. É uma questão de perspectiva, ou de fé. Nascemos com um prazo limitado para interpretar o mundo. Fazemos o que podemos. O legado de todos que nos precederam nesse esforço pode ajudar ou confundir, e em última instância ninguém nunca prova nada. Atribuir um propósito superior a um lance qualquer da vida é construir uma ficção muito pessoal. Dar sentido ao mundo é um ato criativo. Uma visão de mundo é uma narrativa."
Trecho de Cordilheira, romance de Daniel Galera.

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