quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011


Aprendeu que em situações de tensão os humanos estamirão

"saiu sem saber o que tinha na bolsa. Maria, a doida da rua, não tolerava desaforos dentro de casa. maquiou-se com o talo da erva doce e passou um pouco de colorau nas maças do rosto.
feito jiboia que vai pegar gato na esquina. feito catador de batata que joga uma dose de pinga goela abaixo antes do café. só pra usufruir do vapor. pra beber suco de couve e chocolate. beber o café do escritório e engolir raiva. o frescor da ignorância. dormia nua pra ir pescar sardinha no riacho. trazer sabedoria. Pela manhã, escutou dos meninos que não agüentavam mais. dormir em beliches e dividir o quarto com o papagaio. aquilo de um perto do outro. feito jogar caixeta. empilhadeiras de cimento e carvão. Vestiu um calção, cobriu com o vestido e subiu o morro. Maria foi à feira. ter contato com o verdume a deixava calma. só pra correr pelada da porta do banheiro até sua barraca. apalpar tomates com o dedão adormecia tua penugem. conhecia o gosto da folha só de tocar tuas raízes. via nutrientes pelo pé do alface. pelo chinelo dos homens. dormir só para ela significa sonhar com ladainhas e decidir, dia a dia, se usaria peruca ou se trançaria o cabelo. Sentia-se presa. pensava em saltar de asa-delta. só pra comer os pombos com mais gosto. comer com molho. shampoo de camomila. salgava com baba de jaca verde. roubava babosa da vizinha. Naquele dia, o rabanete nas mãos. pensou em levar leite com manga batida pros filhos. iogurte dos deuses. só pra ver o ódio escorrer pela boca. Salgar os olhos. Mas Maria era santa. Sua única crueldade é colecionar borboletas. na gaveta amontoa patas perdidas. Escutou que o pó das asas era arma antiga das mulheres que dão duro na vida. enxergava alegria em cada estrela no céu. vivia repleta de ver a lua. e Maria vendia senhas na fila do pastel. Chegada sua vez, vendia seu lugar e voltava. Foi acusada de produzir vícios. ganhou dois reais por uma cantada. Resolveu comprar chicória e bater com cenoura. pra sonhar feito banho de cachoeira. feito o lado da escotilha que brilha tranquilo, apesar do corpo estendido. Maria, a louca da rua, foi condenada por suicídio. aprendeu desde cedo que o fundo do poço é fundo por ser barato e líquido."
Otavio Ranzani...


o dia da semana de que mais gostava...

"sábado era o dia da semana de que mais gostava... era o dia em que ia para a feira comprar sua alface fresquinha... na sexta-feira demorava a dormir, pensando no grande encontro que estava por vir... e, claro, dormia mal, ansiosa para que a manhã do dia seguinte chegasse logo... entre um cochilo e outro, uma imagem verde e outra passavam-lhe pela sua cabeça... o relógio despertador tocava às seis e meia da manhã... mas ela já estava com os olhos abertos momentos antes, esperando apenas para apertar o botão... logo em seguida saía finalmente da cama... fazia seu café, que tomava com leite, acompanhado de algumas bolachas... depois se dirigia ao banho... apesar da ansiedade, era um banho demorado, afinal ela queria estar limpinha, cheirosa e bem apresentável... e gostava tanto da alface que colocava aquele seu vestido verde de que mais gostava... era uma forma de homenageá-la... quando finalmente terminava sua arrumação, pegava sua sacola e saía de casa... para sua felicidade, morava muito perto da rua onde era
realizada a feira... assim, caminhava apenas algumas quadras e lá estava ela, adentrando aquele ambiente de que tanto gostava... passava cumprimentando a todos os feirantes, com um sorriso meio envergonhado... mas não se atrevia a olhar qualquer outra mercadoria... seria como se estivesse traindo sua querida verdura... a única exceção era com os tomates, pois eram o seu pequeno agrado a ela... portanto, logo após comprá-los, dirigia-se diretamente à sua barraca favorita... como de costume, o feirante a esperava... cumprimentava-lhe com um belo sorriso e um carinhoso bom dia... ela lhe dizia o mesmo, embora não conseguisse se ater muito a ele.... seus olhos já estavam pousados nas alfaces verdes e frescas à sua frente... apreensiva, não tardava em tocá-las... ao fazer isso, sentia arrepios... elas ainda estavam molhadinhas... sentia a água escorrer por sua mão... sem pensar muito, como num ato reflexo, agarrava alguma por trás e levava diretamente ao rosto, para sentir o seu cheiro e frescor mais de perto... depois, colocava-a delicadamente de volta em seu devido lugar e repetia a operação uma a uma... e assim sentia-se como se estivesse em seu jardim, cuidando das suas mais belas flores verdes... o feirante já estava acostumado com a situação e a deixava tranquila com suas alfaces... não queria interromper esse momento tão sublime... ela sentia de fato uma sensação muito boa, como se estivesse nas nuvens... em nuvens verdes, leves e cheirosas... até que finalmente voltava ao plano terreno e decidia de fato quais seriam as escolhidas... nesse sábado, haviam sido duas as sortudas... e encostadas em seu peito, que ainda batia acelerado, foram suas acompanhantes no caminho de volta para casa... e também seriam o acompanhamento do seu almoço... do dia da semana de que mais gostava..."
Tiago Elídio...

Foto: Tiago Elídio... Feira da Rua dos Artistas... Rio de Janeiro...

2 comentários:

Anônimo disse...

adorei o texto o Otavio, até agora o melhor participante. Irreverente, engraçado e punjente,

parabéns!

Fer

Otavio Ranzani disse...

Fala Tiago! Coloquei o texto lá no Canela... valeu pelas parcerias! Amei esta estamira. Abraço, Otavio (http://canelacafe.zip.net)